Povoado do Cramanchão Reprodução parcial do relatório de 2003

1 – Resumo

Inserida num Projecto Nacional de Trabalhos Arqueológicos, a intervenção no Cramanchão tinha como objectivo primordial contribuir para um melhor conhecimento do povoamento romano nesta região transmontana.

A jazida em questão tinha já sido alvo de pequenas menções e mesmo de uma escavação clandestina, porém, urgia obter novos dados com metodologias que consideramos adequadas. Deste modo, a estratégia passou pela abertura de três áreas que permitiram compreender um pouco melhor a jazida em questão ao mesmo tempo que colocaram novas questões que esperamos responder nos próximos anos de projecto. Por ora estão documentadas três fases de ocupação no local, uma da Idade do Bronze ou Ferro e uma outra inserida no período romano, nomeadamente entre os séculos II e IV d. C.

2 – Objectivos

O principal objectivo da inserção do Cramanchão no projecto Terras Quentes era o de acrescentar alguns aos tão escassos dados referentes à presença romana na região de Macedo de Cavaleiros e, de uma forma mais alargada, de Trás-os-Montes.

No ano de 2003 os trabalhos foram orientados de forma a obter dados relevantes que permitissem delinear estratégias para uma melhor optimização de esforços e meios para os anos vindouros do projecto. Deste modo, eram três os principais objectivos da intervenção deste ano: compreender a diacronia de ocupações do local em questão, ou seja, ter uma percepção da estratigrafia da jazida; obter dados de áreas distintas e definir quais detêm maior potencial de informação de modo a propiciar futuros alargamentos; minimizar o impacte das escavações clandestinas efectuadas por habitantes locais.

3 – Execução

Os trabalhos arqueológicos no povoado do Cramanchão decorreram entre 14 e 25 de Julho de 2003, tendo-se regressado ao campo nos dias 31 de Julho e 1 de Agosto para terminar a escavação de um depósito e cobertura das sondagens.

A direcção dos referidos trabalhos esteve a cargo dos arqueólogos Carlos Mendes e João Tereso.

Contou-se com a colaboração de estudantes do 2º e 3º anos do curso de Arqueologia e História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, uma estudante do curso de Antropologia do ISCTE, membros da Associação Terras Quentes e estudantes do ensino complementar e secundário originários do Concelho de Macedo de Cavaleiros, num programa promovido em conjunto entre a associação Terras Quentes e a Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros. Acrescente-se igualmente a presença de mão-de-obra não especializada, paga, angariada na Freguesia dos Cortiços.

A totalidade da equipa encontra-se discriminada na ficha técnica.

4 – Metodologia e estratégia

O método de registo adoptado nos presentes trabalhos de escavação segue, de um modo geral, os procedimentos defendidos e definidos por Harris.(1991) Desta forma, a Unidade Estratigráfica(UE) é a unidade básica de registo traduzida em depósitos, valas, estruturas e interfaces. Estas foram removidas, em cada sector, pela ordem inversa à sua deposição, sendo a sequência comum aos três sectores.

Essas UEs foram registadas segundo critérios considerados adequados, e mencionados em Anexo, adaptados de uma proposta anterior (Museum of London, 1994), tendo-se efectuado igualmente registo gráfico e fotográfico das diversas realidades identificadas.

O registo gráfico incidiu sobre os planos da totalidade das UEs identificadas tendo-se desenhado cortes de pontos com maior pertinência para a compreensão dos diferentes sectores.

O registo fotográfico incluiu fotos da totalidade das UEs e também de diversos aspectos e fases de escavação.

A estratégia adoptada nesta primeira fase de trabalhos passou pela definição de distintas áreas de intervenção com distintos objectivos a curto prazo. Foram, deste modo, definidos três sectores (A, B e C). O sistema de quadriculagem, está orientado a Norte (Y) e a Este (X) tendo-se optado pela utilização de um sistema de referenciação numérico (ver figura 1) e tendo como base o metro.

Figura 1 – Sistema de referenciação métrico

O Sector A corresponde a uma área de 9 m² e encontra-se a Sul das mais profundas afectações por parte das intervenções clandestinas. Inicialmente mais reduzida foi alargada em 2 m² para Norte para facilitar a compreensão da estrutura identificada. Porém, o principal objectivo quanto a este sector era o de atingir níveis altimétricos que permitissem a percepção da diacronia de ocupação da plataforma do Cramanchão, para o que, a dado momento, decidiu-se escavar somente as fiadas Y:485 e 486, correspondendo a 6 m². A escolha dessas fiadas foi determinada pela presença, a Norte, da referida estrutura que necessita de um novo alargamento para melhor ser compreendida.

O Sector B foi inicialmente programado para 12 m², porém, por questões de tempo, optou-se por não intervencionar a fiada 500, isto é, 3 m². Localiza-se 11 metros a Norte do Sector A, pretendendo-se, em conjunto com o referido sector, perceber a área envolvente da sepultura posta a descoberto pelas intervenções clandestinas.

Já o Sector C corresponde a uma área de 17 m². Pela dispersão peculiar desses metros é já perceptível que esta estratégia visava objectivos muito concretos. Tais objectivos passaram essencialmente pelo inicio da minimização de impactes provocados pelas intervenções clandestinas. A selecção da área em causa foi efectuado com a muito útil colaboração dos responsáveis pelas afectações, correndo-se, de forma consciente, o risco de parcializar a leitura de algumas zonas de intervenção.

5 – Localização geográfica e denominação

O povoado do Cramanchão localiza-se no Concelho de Macedo de Cavaleiros, mais concretamente na Freguesia dos Cortiços, num local pertença de António Bernardino Ferreira, alugado por 7 anos (a partir de 10 de Abril de 2002) ao Sr. Bernardo Patrício.

O topónimo Cramanchão corresponde a uma elevação situada numa ilha granítica em zona de xistos, com as seguintes coordenadas:

Lat. 91066098
Long. 206113378
Alt. 477metros

Figura 2 – Localização do Cramanchão na carta militar, esc. 1:25000

Outros topónimos aparecem associados a este mesmo local, são eles Vale Mourão e Quinta de Vale Mourão. A opção Cramanchão afigurou-se-nos como a mais adequada. Pretendeu-se, desta forma, seguir as escassas referências da jazida na bibliografia arqueológica, bem como a nomenclatura presente na base de dados do Instituto Português de Arqueologia.

Trata-se de uma elevação com limites um pouco abruptos a Oeste e a Sul (apesar deste limite encontrar-se irremediavelmente afectado pela construção do caminho de ferro) e suaves nos restantes pontos, não sendo, porém completamente vulnerável. Detém, então, significativas condições naturais de defesa. É sobranceira à Ribeira do Carvalhal, afluente do Tua.

 6 – Historial de investigações

O sitio arqueológico aqui em estudo foi já alvo de diversas e curtas menções sintetizadas por Sande Lemos na sua tese de doutoramento (1993b, p.186-187).

O referido autor menciona os alinhamentos de muros visíveis no local e o material romano que se vislumbra à superfície. Refere inclusive a aparente ausência de estruturas defensivas, ao mesmo tempo que classifica a jazida como “povoado romano” (Lemos, 1993b: p. 187) denominação correspondente a povoados abertos, rurais, com consideráveis áreas de dispersão de materiais incluindo cerâmica de importação e estelas funerárias de indígenas (Lemos, 1993: p. 405). Estes povoados podem ter dimensões e origens várias, essencialmente derivando de comunidades indígenas que se instalariam assim em terrenos próprios para trabalhos agrícolas. A sua fundação situar-se-ía, genericamente, no tempo dos Flávios, num tempo de estabilidade.

Foram, no entanto, alguns populares interessados em arqueologia que efectuaram as primeiras incursões no local, numa procura entusiasta por vestígios do passado. As pessoas em causa, os Srs. Luís, Bernardo e Alexandre Patrício cederam-nos as suas notas e fotografias de campo, facultando-nos acesso aos materiais exumados. Estiveram de igual modo presentes aquando dos trabalhos de campo deste ano, fornecendo-nos informações de extrema utilidade. Os dados seguintes estão contidos nas notas de campo acima mencionadas.

Por volta de 1980, e depois, em 1986, 1989 e 1990, as pessoas acima mencionadas começaram a pesquisar no local fazendo recolhas de superfície, aproveitando o facto de, por ocasião de um incêndio, um tractor ter feito diversos regos para evitar a propagação das chamas. Nestas primeiras abordagens encontraram pesos de tear de barro e pedra, mós e escória, contudo, não efectuaram qualquer escavação.

Em Agosto de 1990 cavaram no Quadrado F10 do sistema de referenciação que criaram (entre os actuais sectores A e B)(ver figura), tendo encontrado uma sepultura. Nessa sepultura recolheram uma caveira, dentes humanos, um brinco, um botão, alfinete e agulha. A sepultura é constituída por lajes pétreas verticais a delimitar o espaço e 2 outras a servir de tampa. Os esboços existentes são de difícil percepção.

No ano de 1993, em Abril, Bernardo Patrício escavou no “quadrado” F11 no qual recolheu um dente e “vidro verde”. Nesse mesmo ponto, no mês seguinte, detectaram duas lajes que levantaram, tendo como resultado, de acordo com as notas de campo, a recolha de fauna, um dente de marfim e cerâmica. Surgiu também uma parede. Voltaram a colocar as lajes no sítio de onde as haviam retirado, cobrindo o local com terra.

Figura 3 – Sepultura escavada clandestinamente

Figura 4 – Esquema de quadriculagem das intervenções clandestinas

Em Agosto escavaram em H15 e 16 onde detectaram, para além de um movente e um dormente, estruturas de paredes e uma soleira de porta. Corresponde ao actual Sector C. Intervencionaram igualmente em I10.

As campanhas tinham durações de 1, 2, e, por uma ocasião, de 4 dias.

No Verão de 2000 Bernardo Patrício deu a conhecer esta jazida e o teor dos seus trabalhos ao arqueólogo Carlos Mendes que então visitou o local. Posteriormente surgiria o projecto Terras Quentes que previa intervenções continuadas no local.

 7 – Descrição dos trabalhos

7.1 – Sector A

7.1.1 – Contextos e estratigrafia

Nesta área após a remoção do depósito superfícial, a UE [01], surgiu um depósito um pouco mais compacto, e uma realidade complexa: uma estrutura de pedras (xisto) fincadas, um possível empedrado, a UE [11] , que, após alargamento para Norte para averiguações, verificou-se estar a delimitar uma provável lareira, tendo-se escavado um depósito muito escuro com alguns carvões (UE [12]). Esta estrutura, apesar da escassa cultura material associada, deveria ser romana. Forneceu carvão e fauna carbonizada.

Esta estrutura pétrea encontrava-se fincada no depósito que compunha a UE [10], que era também cortada por [14], interface negativo que, após escavado, serviu de lareira, tendo sido cheio pelo já referido [12]. A estrutura [11] foi parcialmente desmontada para permitir a sua melhor compreensão. A UE [10] corresponde a uma outra ocupação romana na qual se registou uma pia de pedra. Abaixo desta detectou-se um outro depósito, a UE [26], que, escavado em 6m², cobria um outro depósito e uma estrutura pétrea de funcionalidade indeterminada ( UE [ ]) que assenta nessa camada. Trata-se certamente da ocupação mais antiga até agora detectada nesta jazida.

Este último depósito e a estrutura que nele assenta não foram intervencionadas nesta primeira campanha.

7.2 – Sector B

7.2.1 – Contextos e estratigrafia

Neste sector foi definido um primeiro interface pertencente ao depósito de superfície, a UE [02], abaixo da qual definiu-se um outro depósito, a UE [09]. Aquando da remoção deste ultimo depósito tornou-se evidente que se tratava de uma realidade sem qualquer distinção em relação à que a cobria, pelo que foi estabelecida uma relação de equivalência entre ambas.

Este depósito superficial cobria dois outros depósitos com evidente abundância de elementos pétreos, detendo, porém, distintas colorações. A relação entre ambas era evidente: a UE [13] cobria a [24].

A escavação da UE [13] envolveu diversas dificuldades: a grande abundância de elementos pétreos, entre os quais uma soleira de porta, fazia adivinhar a existência de estruturas de paredes apesar de a concentração pétrea não aparentar deter qualquer estruturação; a grande abundância de materiais arqueológicos, alguns bastante bem conservados, tornou mais lenta a escavação do contexto em questão. Este depósito cobria a já referida UE [24], que ficou por escavar, bem como a soleira da porta e um muro que lhe está associado (a UE [35]). Cobria de igual modo um possível piso pétreo, constituído por lajes graníticas e um outro depósito a norte do muro acima referido, nomeadamente as UEs [37] e [38]. Este último depósito não foi intervencionado nesta primeira campanha.

O muro detectado é constituído por elementos pétreos de médias dimensões, enquanto que o seu interface de destruição é bastante irregular, denotando níveis distintos de afectação.

A coloração muito escura da UE 13 poder-se-á dever à acção do fogo, pois sabemos ter havido um incêndio no local, na década de oitenta. Para evitar a propagação do mesmo, um tractor fez sulcos com um arado, o que poderia justificar o caos de pedras existente no local bem como o grau de destruição da parede, em especial na zona imediatamente a Este da soleira.

 7.3 – Sector C

7.3.1 – Contextos e estratigrafia

Este sector foi aberto com o conhecimento prévio de parte dos contextos que estariam por pôr a descoberto pois no local teriam já sido efectuadas escavações clandestinas.

Num plano inicial detínhamos a UE [04], depósito de topo, misturada com algum sedimento que os populares referidos no ponto 6 colocaram a cobrir as estruturas que expuseram foi identificado, de igual modo, o depósito inequivocamente associado a esse momento [03], bem como as valas abertas (UEs [07; 08]).

Retirados estes depósitos deparou-se-nos uma realidade plural, seccionada pelo curso da estrutura identificada e pelos cortes da área de escavação. Desta forma, nos quadrados 322/501 e 323/501, circunscrito pelos limites da área de escavação e pelo muro [06] a Sul, registou-se um nível de sedimento mais escuro, a UE [16], que, por sua vez, cobria a UE [27]. A remoção deste depósito verificou-se problemática. Abaixo deste depósito encontrava-se um outro de coloração idêntica. A escavação iniciou-se nos cerca de 2m², fazendo-se a dois tempos. Removeu-se um primeiro nível deste depósito sem que se operassem quaisquer alterações, removendo-se um segundo, iniciando-se essa remoção no quadrado 323/501. Continuaram a não se verificar quaisquer diferenças a nível de sedimentos, tanto em termos de composição como de cor. Porém, aquando da remoção deste último nível em 322/501 surgiram duas manchas de argila que podem constituir o topo de um antigo piso. Apesar de não se encontrar distinções a qualquer nível, atribuiu-se um novo numero de UE ao depósito no qual assenta a argila. A distinção entre esta nova UE [41] e a [27] limita-se à diferente relação estratigráfica que mantêm com o possível piso de argila (UE [40]). Este ficou por remover.

Também a Norte do muro [06] mas a Este dos contextos anteriormente definidos abaixo da camada superficial verificou-se uma sequência de difícil percepção devido à presença de raízes de grandes e médias dimensões que revolveram profundamente os depósitos. Assim, abaixo de [03] e [04] existia a unidade [16] e abaixo desta a [25] que detinha mais cascalho e elementos de desagregação do granito denunciando uma maior proximidade face á rocha-base. Este depósito ficou por escavar.

A zona a Oeste do muro [06] encontrava-se bastante afectada pelos trabalhos clandestinos sendo que após o nível superficial registou-se e escavou-se o que restava de um depósito argiloso com materiais cerâmicos muito abundantes e em excelente estado de conservação. A acumulação de materiais detectou-se essencialmente no quadrado 321/500, entre os cortes e o muro. Coberto por este sedimento foi detectado no último dia da campanha um recipiente inteiro depositado numa ligeira depressão (que poderá mesmo assim ser natural), a UE [34]. Esse recipiente encontrava-se encostado ao muro [06], selado por um fragmento de tegulae de grandes dimensões. Todo este conjunto foi denominado de UE [33]. O conteúdo do vaso foi entregue para análise nos serviços do CIPA. O depósito no qual o recipiente assentava assemelha-se em cor aos já anteriormente referidos [27] e [41], apesar de não se identificar ainda uma continuidade física devido a delimitações de área de escavação e de existirem diferenças altimétricas. Este ultimo depósito não foi ainda escavado. Quanto ao conjunto denominado de UE [33] colocam-se diversas possibilidades de interpretação. Devido à sua posição em relação ao muro [06] e ao seu grau de preservação poderá tratar-se de um ritual de fundação, processo comum em sítios romanos. Estratigráficamente a explicação seria outra: tratar-se-ía de mais um recipiente num nível de ocupação, ficando por explicar as razões pelas quais ele se conservou. Uma explicação plausível seria a de que teria sido selado por um derrube que não o quebrou (interpretando deste modo a UE [18] como tal, o que justificaria a presença tão abundante de telha). Para se tratar de um ritual de fundação teria que estar abaixo de um piso de ocupação. Esse piso poderia ter sido destruído nas escavações clandestinas ou por outro qualquer processo pós-deposicional (note-se que a UE [18] é um depósito argiloso, o único até agora em toda a área aberta). Com futuros alargamento poder-se-á compreender melhor o contexto.

Resta então a área a Sul do muro [06], que aparenta ser o interior de dois compartimentos. Coberta pelos depósitos [03] e [04] a UE [15] consistia num depósito com elementos pétreos frequentes, talvez constituindo já parte do derrube das estruturas. Cobria inequivocamente o derrube das paredes bem como uma outra parede, talvez interior, de orientação Sul/ Norte (UE [19]). É constituído por elementos pétreos de granito e xisto emparelhados. O seu interface de destruição (UE [20]) é consideravelmente regular.

A Sul da parede [06] e a Este da [19] definiu-se um novo interface. O topo desse depósito [21] não foi intervencionado devido à exiguidade de área desse compartimento incluída na área de escavação. Já e Oeste da referida possível parede interior o depósito [15] cobria um derrube de pedra da parede [06] e talvez também da [19]. Esse derrube [23] cobria, por sua vez, um outro derrube, a UE [30], este de telha, essencialmente tegulae. Assume-se, deste modo, a mais usual sequência do processo de decadência de uma habitação. Refira-se, porém, que não estava presente no terreno, aquando da escavação, a totalidade das telhas desse derrube. Este foi definido pela presença abundante e pouco usual de telha, concentrada essencialmente junto das estruturas. Por sua vez, a telha assentava no interface de [22] que também era coberto por [15]. Este ultimo depósito poderá ser coevo de [21], apresentando semelhanças significativas, estando, contudo, separados por uma parede.

A parede [06] é constituída por elementos pétreos de xisto e granito, de médias e grandes dimensões que assentam, pelo menos em algumas zonas, na rocha-base. O interface de destruição é irregular denotando diferentes graus de afectação, estando esta parede bastante destruída na zona imediatamente a Oeste da soleira de porta aí detectada. Deve-se salientar que esta estrutura havia sido posta a descoberto, pelo menos parcialmente, aquando das intervenções clandestinas.

7.4 – Materiais arqueológicos

Foi recolhido um abundante e rico espólio arqueológico em especial no que respeita a materiais cerâmicos.

No Sector A, o nível superficial, UE [01] começou por fornecer três fragmentos de outros tantos pesos de tear e abundantes fragmentos, de reduzida dimensão e pobres níveis de conservação, de Terra Sigillata Hispânica (TSH). Salientam-se, porém, alguns fragmentos decorados, onde se vislumbram, apesar de difícil percepção, motivos vegetais (um exemplar) com paralelos em Bragança (Lemos, 1993c: est. CXVI) e motivos circulares (dois fragmentos). Nos níveis de maior relevância estratigráfica, em associação com contextos mais precisos reduz-se um pouco a quantidade da cerâmica, em especial da TSH. Na UE [10] baixou para 1/5 os números de presença desta cerâmica importada, enquanto que no nível inferior, a UE [26] deixa de haver qualquer fragmento deste tipo cerâmico. Devido ao elevado grau de deterioração dos materiais datantes torna-se complicado, nesta fase preliminar de estudo, a atribuição a estas duas fases estratigráficas romanas de um significado cronológico. No que respeita á cerâmica comum, não se verificam significativas diferenças entre as UEs [01] e [10].

No que respeita à UE [26] deverá corresponder a um nível pré-romano pois, como já foi referido, a TSH é ainda inexistente, verificando-se a existência de cerâmica de coloração negra, alguma brunida e decorada com caneluras e finas incisões, e outra com incisões verticais sobre uma decoração plástica.

O sector B salienta-se essencialmente pela unidade [13]. Coberta pelos níveis superficiais detinha abundante telha (ver quadro) e significativas TSH nas quais se salientam os fragmentos decorados, nomeadamente um exemplar de decoração vegetal semelhante à anteriormente referida para o sector A, faixas quebradas acompanhadas de V, e também motivos de espinhas, Contudo, os fragmentos detêm dimensões reduzidas. De qualquer modo, a cerâmica comum é muito abundante, surgindo formas de perfil em S e bordos exvasados. Registaram-se igualmente três fragmentos de dimensões muito reduzidas pertencentes, com grande probabilidade, a recipientes de paredes finas.

Foram recolhidos, nos níveis superficiais, alguns pregos, e duas moedas num avançado estado de deterioração.

O sector C havia já sido muito afectado pelas intervenções clandestinas pelo que é natural a maior escassez de material arqueológico. A excepção está patente na UE [18] que contém uma concentração de material cerâmico única em toda a escavação de 2003. Salienta-se um pote alto do qual se detectaram muitos fragmentos, continuando alguns em corte, por escavar. Foi também recolhido um fragmento de TSH decorada com um motivo semelhante a uma “roda dentada”, porém, o estado de fragmentação não permite atingir níveis superiores de pormenorizações tipológicas.

Neste mesmo sector foi recolhido um pote inteiro, a UE [33]. A forma não é usual, podendo-se encontrar paralelos nos chamados “vasos de paredes refractarias”, como os detectados em La dehesa de Morales, Fuentes de Ropel, Zamora. Aparecem referenciados em níveis do século II.

Figura 5 – Peso da cerâmica de cobertura (excluindo níveis superficiais.

Sintetizando os dados disponíveis, ainda que preliminares, denota-se a presença abundante de materiais cerâmicos romanos, entre os quais frequentes exemplares de TSH, enquadráveis em dois momentos cronológicos situados, pelo menos entre os Seculos II e IV. Conta-se, para estas conclusões, com o estudo preliminar dos materiais recolhidos nas escavações clandestinas, alguns dos quais estão bastante bem conservados. Nestes incluía-se um fragmento de TSH com motivos decorativos semelhantes aos presentes num recipiente de Vale de Ferreiros (LEMOS, 1993c: est. CXIX, nº 5) e diversos fragmentos de dolium semelhantes em forma e decoração a um da Quinta da Ribeira. Ambas estas jazidas forneceram, segundo F. Lemos (1993: p.376 e 377) cerâmica importada, nomeadamente sigillata, pertencente à fase inicial dos fabricos hispânicos. A presença do pote inteiro no sector C vai de encontro a esta possibilidade, bem como os motivos decorativos circulares e de espinhas da TSH. A presença de TSH Tardia atesta o provável limite mais recente da ocupação do Cramanchão.

Foto 1 – TSH / UE [13]

Foto 2 – TSH [02]

Foto 3 – TSH (direita: UE [18]; esquerda: UE [15])

Foto 4 – TSH [01]

Quanto aos níveis mais antigos, da UE [26], já foram mencionados acima, tendo fornecido materiais da Idade do Bronze Final ou Ferro.

8 – Conclusões

Na generalidade, a pequena campanha de escavação que decorreu no ano de 2003 no povoado do Cramanchão forneceu dados significativos para a planificação das intervenções dos anos seguintes. Contudo, nem todos os objectivos foram cumpridos, muitas questões ficaram ainda sem respostas enquanto muitas outras surgiram.

Ficaram por cumprir na totalidade os objectivos subjacentes à abertura do Sector A pois não se atingiu a rocha base, não se conhecendo, então, toda a sequência temporal e sedimentar da ocupação desta elevação. Mesmo assim foi neste sector que se detectou e registou uma mais complexa sequência de níveis de ocupação.

Abaixo da camada superficial, um primeiro nível de ocupação, do período romano corresponde ao interface da UE [10], na qual foram fincadas pedras (xisto), talvez constituindo um empedrado, e escavada uma lareira. A presença de abundantes materiais arqueológicos romanos na UE [10] parece indicar que o interface do depósito que por este era coberto constituía um segundo nível de ocupação. A presença de uma pia de pedra quebrada, mas ainda assim de grandes dimensões, aponta nesse sentido.

Abaixo deste, um terceiro nível de ocupação, desta feita pré-romano, corresponderá ao topo do depósito, ainda por escavar (UE [31]) estando associado a uma possível estrutura pétrea de funcionalidade indeterminada.

Não sabemos se existem ocupações mais antigas no local pois, como já foi referido, não se atingiu a rocha base.

Não é fácil a integração e interpretação cronológica destas ocupações. A ocupação pré-romana, como já se mencionou, deverá corresponder a um período da Idade do Ferro ou do Bronze final, à semelhança da jazida da Terronha do Pinhovelo (Carvalho, et. al., 1997), apontando-se com maior probabilidade para a segunda hipótese.

A mais recente ocupação romana é de difícil pormenorização cronológica mas dever-se-á enquadrar no século II, tendo perdurado este povoado provavelmente até ao século IV.

No sector B definiu-se um momento de ocupação associado a uma parede de orientação Oeste/Este, uma soleira de porta e mesmo um provável piso constituído por lajes pétreas de consideráveis dimensões. Por alguma razão, talvez devido a um incêndio da década de oitenta e à subsequente limpeza do terreno por um tractor e arado, os contextos apresentam-se consideravelmente destruídos. Recolheram-se, contudo, consideráveis quantidades de materiais, com níveis de conservação muito significativos. Não se poderá, neste momento, definir a totalidade da área do compartimento, deixando-se tal tarefa para alargamentos futuros, bem como uma qualquer interpretação funcional para este espaço. Já em termos cronológicos, a presença de cerâmica romana serve de indicador. Qualquer inserção temporal mais pormenorizada é, nesta fase de estudo tão preliminar, muito arriscada. Note-se que os paralelos para contextos deste tipo, com dados fiáveis de escavação, na área geográfica em questão são escassos.

Já no sector C foram cumpridos os objectivos de registar e avaliar as afectações provocadas pelas escavações clandestinas. Estas terão comprometido seriamente qualquer compreensão futura da zona imediatamente a Oeste do muro [06], onde se identificou o pote intacto.

Nesta área estamos perante o que deverão ser três compartimentos. Um primeiro entre [19] e o corte de escavação a Este. O outro a Oeste dessa provável parede interna. E um possível terceiro compartimento na área onde se recolheu o pote intacto, pois a parede [06] aparenta entrar pelo corte Oeste do quadrado 322/501, com uma orientação Oeste/Este. Ficam por explicar, no entanto, o possível piso de argila encontrado nesse mesmo quadrado.

A integração cronológica não é ainda definitiva, porém o referido pote inteiro assemelha-se tipologicamente a recipientes do séc. II d.C.. Note-se, contudo, que a UE [18], que o cobria, não detém necessariamente a mesma cronologia. Aliás, os interfaces dos depósitos [21] e [22] apresentam cotas consideravelmente mais elevadas do que o conjunto das UEs [33] e [34], o que se torna muito significativo dado existir a possibilidade, a confirmar no ano de 2004, de esses níveis (num dos quais assentavam os derrubes de pedra e telha) serem antigos níveis de ocupação.

A similitude entre as UEs [06] e [35], isto é, as estruturas dos sectores C e B, sugerem uma contemporaneidade por enquanto difícil de confirmar.

Como terá ficado bem patente, muitas questões ficaram ainda por solucionar e outras surgiram, a necessitar de ser respondidas, contudo, inserindo esta intervenção no contexto de um processo de escavação e interpretação que encontra ainda no inicio, parece natural fazer um balanço positivo desta campanha, tendo sido possível contribuir um pouco mais para o enriquecimento do discurso histórico envolvendo esta área transmontana. De facto, é já possível fazer diversas interpretações e especulações.

9 – Integração regional: o espaço e o Homem, o Homem e o remanescente. O inicio de uma História.

O povoado do Cramanchão localiza-se, com grandes probabilidades no antigo território dos Zoelas, conventus de Asturica Augusta. Se o local da sua sede é, por enquanto, consensual, apontando-se a jazida do Castro de Avelãs (Bragança) apoiando-se em evidências epigráficas, os limites deste não são totalmente consensuais.

Jorge Alarcão coloca a fronteira ocidental, com o conventus Bracaraugustanus, no Tuela (Alarcão, 1988:p. 57) enquanto que Lemos, seguindo Tranoy, aponta como charneira a barreira montanhosa formada pelas serras de Escusaña (Sanábria), Coroa, Nogueira e Bornes (Lemos, 1993: p. 482-483).

Na confluência com o Rabaçal esta deveria seguir a vertente setentrional das serras de Bornes e Mogadouro até ao Douro. Este rio constituiria o limite oriental desta civitas, porém, Lemos pormenoriza: o limite passaria pelo trecho final do rio Esla e o curso do Douro até cerca de Mazouco (foz do Tormes). A oriente estavam os Vaceus.

A Norte, segundo J. Alarcão, a fronteira situar-se-ía na serra de Montezinho enquanto que, a nordeste, o território dos Zoelas atingiria provavelmente o vale do Aliste em Espanha. Contudo, Lemos sustenta que o limite Setentrional localizava-se no “arco montanhoso formado pelas serras da Sanábria e de La Culebra” acima do qual estariam os Superati e os Brigaeceni.

Deste modo, o Cramanchão poderia ser o povoado mais a Sul da área Zoela, seguido da Terronha do Pinhovelo, como, aliás, é apontado por Lemos (1993, p. 483). O sítio da Quinta de Vale Mourão, após esta primeira campanha e analisando, mesmo que sumariamente, as evidencias das intervenções clandestinas, afigura-se como um povoado com múltiplas actividades testemunhadas pela presença, com alguma abundância, de mós, pesos de tear e escória (esta nas escavações clandestinas). Os dados são ainda escassos pelo que não contrariam, por enquanto, a classificação, embora pouco fundamentada, de “povoado romano” por parte de Lemos (1993b: p. 187). Mencionei já, no ponto 6, o que o referido investigador inclui nessa definição. O mesmo refere que “do ponto de vista económico respondem, provavelmente, ao aumento da procura de produtos agrícolas e pecuários, provocado pelo crescimento das cidades e outros núcleos urbanos, bem como pelo incremento da actividade mineira.” (Lemos, 1993: p. 407). Tal verificar-se-ía logo com os Flávios. Porém, muitos destes povoados terão subsistido no Baixo Império, o que parece evidente face à existência de Terra Sigillata Hispânica Tardia(Idem, Ibidem: p. 407). Já Carvalho, et al (1997, p. 127) defendem que os “Zoelas praticavam uma economia agro-silvo-pastoril [sendo] também possível que algumas manchas de povoados estivessem relacionadas com a actividade mineira”. De entre as produções desta área salienta-se o linho que terá assumido papel preponderante para o desenvolvimento da região e sua inserção em plenitude no mundo romano, ao ponto de se efectuar um tratado comercial para exportação deste produto para Itália. Refiro-me a menções de Plínio.

Refira-se que, como Carvalho, et. al. (1997: p. 127) bem salientaram, Estrabão escreve que a maioria dos guerreiros usava saios de linho, o que atesta o seu verdadeiro valor comercial e económico e as potencialidades para o desenvolvimento da região. No que concerne ao Cramanchão são abundantes os pesos de tear recolhidos, em especial, nos trabalhos prévios a 2003, no entanto, outros aspectos são mais relevantes no que concerne a esta questão. Tratam-se de aspectos históricos e toponímicos. O povoado em questão localiza-se na freguesia dos Cortiços, sendo que a localidade que lhe é mais próxima é exactamente a sede da freguesia. Localmente, o termo “Cortiço” não está como seria de esperar relacionado com a exploração de colmeias. Um “Cortiço” é um recipiente de grandes dimensões relacionado com a produção de linho. Aliás a memória popular local aponta-nos a exploração de linho como actividade de extrema importância para aquela região até à cerca de 50 anos. Deste modo, o povoado do Cramanchão poderá estar relacionado exactamente com actividades de exploração, produção e comércio de linho. A integração plena deste povoado na rede de trocas comerciais parece comprovada pela presença de moeda bem como de sigillata importada e cerâmica fina Tratam-se, porém, e por enquanto, de suposições. Futuras campanhas poderão vir a esclarecer estas e outras questões.

 10 – Referências

 ALARCÃO, J. (1988) – O domínio romano em Portugal. Mem-Martins. Edições Europa-América.

CARVALHO, et. al. (1997) – Assentamento romano fortificado da Terronha (Macedo de Cavaleiros/Bragança). Em busca do passado 1994/1997. Junta Autónoma de Estradas. Lisboa.

HARRIS, E. (1991) – Principios de estratigrafia arqueológica. Editorial Crítica. Barcelona.

LEMOS, F (1993) – Povoamento romano de Trás-os-Montes Oriental. Volume II –. Universidade do Minho. Braga.

LEMOS, F. (1993B) – Povoamento romano de Trás-os-Montes Oriental. Volume IIa –Catálogo. Universidade do Minho. Braga.

LEMOS, F. (1993c) – Povoamento romano de Trás-os-Montes Oriental. Volume III – Estampas. Universidade do Minho, Braga.

MUSEUM OF LONDON (1994) – Archaeological site manual. 3rd edition, Museum of London Archaeology Archaeology Service.

VIEGAS, C. (2001) – Cerâmica, economia e comércio: a terra sigillata de Alcáçova de Santarém. Lisboa, Departamento de História da Universidade de Lisboa.

11 – Ficha técnica:

Direcção do projecto:
Carlos Mendes

Direcção de campo:
Carlos Mendes
João Tereso

Trabalho de campo:
Arqueólogos:
Carlos Mendes
João Tereso
 

Estudantes de arqueologia:
Maria Eugénia Feliz
Joana Gomes< Nídia Santos

Estudante de Antropologia:
Ana Gaspar

Jovens estudantes locais:
César Vila Franca
Filipe Mendonça
Luis Pinto
Miguel Mendonça
Vicente Cardoso

Voluntários da Associação Terras Quentes
Manuel Cardoso
Bernardo Patrício
Alexandre Patrício

Trabalhadores indiferenciados:
Joel Rosário
David Rosário
Micael Serrano
Luis Esteves

Relatório:
João Tereso

Colaboração de:
Carlos Mendes
Rita Gaspar